Por: Cristina Cunha (OAB/RJ 176.249)
Há anos os titulares de cartórios, em especial no estado do Rio de Janeiro, através de seus Órgãos Representativos (ANOREG/BR, ANOREG/RJ, IEPTB/BR, IEPTB/RJ), vem tentando aprovar um projeto de lei que beneficie os Titulares de Cartórios (Tabeliães, Notários e Registradores), descumprindo o fundamento constitucional da impessoalidade e do concurso público.
Passados 34 anos da promulgação da nova ordem constitucional brasileira e observadas todas as emendas constitucionais, a todo tempo, o Supremo Tribunal Federal é chamado a dizer acerca da inconstitucionalidade de dispositivos legais que pretendem subverter a ordem constitucional posta, tudo em razão e por força de interesses não republicanos e mirando a pessoalidade e a ilegalidade (lato sensu).
Recentemente, no ano de 2021, foram distribuídos dois processos administrativos junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Processo SEI nº 2021-0614211 e Processo SEI nº 2021-0689907).
Ambos os processos, tinham como meta, fazer com que os Cartórios vagos, ou seja, aqueles cartórios que estivessem sem os seus Titulares, fossem por motivo de morte, aposentadoria, invalidez, renúncia ou perda (nos termos do art. 35 da Lei 8.935/94), incorporados pelos Cartórios que estivessem providos por seus Titulares.
Contudo, tal situação é vedada pela Constituição Federal, conforme preceituado no parágrafo 3º, do art. 236, que diz que as Serventias só podem ser providas através de Concurso Público de Provimento ou Remoção, com uma única exceção aceita pelo Conselho Nacional de Justiça, que é a Orientação nº 7 de 2018, que diz em seus parágrafos 1º e 2º, do art. 2º, que o Cartório deverá estar vago há mais de 5 anos e ter sido ofertado em Concurso Público, sem que tenha havido interesse de nenhum concursado desse Concurso Público, para assumir aquela Serventia Extrajudicial.
Dos processos administrativos acima, um deles foi arquivado (SEI 2021-0614211) por se tratar do mesmo tema do segundo processo (Processo SEI nº 2021-0689907). sendo certo que este segundo teve andamento recentemente, quando foi publicado no diário de Justiça Eletrônico em 18/07/2023 a Portaria CGJ nº 1923/2023, dispondo sobre a instituição de um Grupo de Trabalho para apresentação de proposta de reestruturação dos serviços extrajudiciais de regiões judiciárias do Estado do Rio de Janeiro.
Dispõe na portaria CGJ nº 1923/2023, que, considerando os procedimentos SEI nº 2021-0689907 e SEI nº 2022-06139319, e ainda, essencialidade da análise das propostas por grupo composto pela Alta Administração do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, é o que o Tribunal de Justiça, resolve instituir grupo de trabalho composto por juízes auxiliares da Corregedoria Geral da Justiça e da Presidência, presidido por desembargador indicado pelo Corregedor-Geral da Justiça, para apresentar proposta de reestruturação dos serviços extrajudiciais, no prazo de 180 dias.
Contudo, causa bastante estranheza o interesse na reestruturação dos serviços extrajudiciais, num prazo tão curto, tendo em vista que o LIX Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga das Delegações de Atividades Notariais e/ou Registrais está em andamento e em fase de finalização, motivo pelo qual essa reestruturação deveria ser realizada apenas e tão somente após o término do Concurso em andamento. Concomitantemente ao andamento dos Processos Administrativos SEI nº 2021-0689907 e SEI Nº 2022-06139319 , no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, está tramitando no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 4.188/2021 (EMS nº 4.188/2021) que acabou de retornar à Câmara dos Deputados, após votação no Senado Federal, conhecido como Marco Legal de Garantias, que visa além do aprimoramento das regras de garantias, também sobre a incorporação dos Cartórios vagos pelos Titulares de Cartórios providos, bem como, a queda do Teto Constitucional dos Titulares que assumirem os Cartórios que estejam vagos, matéria vedada tanto pela Constituição Federal, quanto por Julgados do Supremo Tribunal Federal e que só podem ser alterados através de Projeto de Emenda Constitucional – PEC.
Neste Projeto de Lei (EMS 4.188/2021), aprovado pelo Senado Federal, encaminhado (no dia 12/07/2023) novamente a Câmara dos Deputados, os titulares dos Cartórios Extrajudiciais, pretendem de uma só vez e de forma transversa, resolver a questão dos Cartórios vagos com a incorporação pelos Cartórios providos, sem que haja Concurso Público, e, ainda, a queda do Teto Constitucional do Titulares que vierem a assumir os Cartórios vagos.
Sobre o Teto Constitucional cabe aqui esclarecer que, o mesmo só cabe aos interinos dos Cartórios vagos, haja vista que, com a vacância das Serventias, os Cartórios antes privatizados retornam ao Poder Público, motivo pelo qual a remuneração do Interinos é de até 90,25% do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, conforme determinado pela Constituição Federal.
Ou seja, além dos Titulares pretenderem a incorporação dos Cartórios vagos, sem que haja o Concurso Público para tal, ainda querem receber integralmente sobre a arrecadação destes Cartórios incorporados, os quais seriam meros prepostos do Estado, RETIRANDO ASSIM, RECURSOS DO FUNDO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Sobre a aplicabilidade do Teto Constitucional, vejamos o Tema nº 779 do STF:
“Tema 779 – Aplicabilidade do teto constitucional à remuneração de substitutos (interinos) designados para o exercício de função notarial e registral em serventias extrajudiciais.
Relator: Min. Dias Toffoli
Leading Case:
RE 808202
Descrição:
Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 37, II e XI, e 236, §3º, da Constituição Federal, a submissão, ou não, da remuneração dos substitutos designados, em caráter precário, para o exercício de função delegada em serventias extrajudiciais ao teto constitucional.
Tese:
Os substitutos ou interinos designados para o exercício de função delegada não se equipara aos titulares de serventias extrajudiciais, visto não atenderem aos requisitos estabelecidos nos arts. 37, inciso II, e 236, §3º, da Constituição Federal para o provimento originário da função, inserindo-se na categoria dos agentes estatais, razão pela qual se aplica a eles o teto remuneratório do art. 37, inciso XI, da Carta da República.”
A Emenda Nº 49 (referente a Emenda Nº 64 -CAE), de forma totalmente sorrateira, insere os parágrafos 3º e 4º, no já existente art. 39, da Lei 8.935/94, disciplinando que a designação de responsável pelo expediente não precise mais ser o substituto mais antigo sem vínculo de parentesco com o antigo Titular, bem como, que diferentemente do entendimento do Supremo Tribunal Federal, no Tema nº 779, os titulares passariam a receber de forma integral sobre a arrecadação da serventia vaga, e não mais sob o teto constitucional de 90.25% do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Segue abaixo o texto da Emenda Nº 49 (referente a Emenda Nº 64 -CAE) aprovada pelo Senado:
“Art. . A Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 39...
§3º A designação do responsável pelo expediente deverá recair sobre notário ou oficial de registro que exerça ao menos uma das atribuições da serventia vaga no mesmo município ou em município próximo ou, ainda, inexistindo notário ou oficial de registro que preencha as condições da hipótese anterior, escrevente substituto da mesma serventia vaga ou, inexistindo, escrevente de outra serventia de mesma natureza da serventia vaga do mesmo município ou de município próximo.
§4º Na vacância da titularidade da delegação, os serviços pertinentes à serventia continuarão a ser exercidos em caráter privado quando o designado como responsável pelo expediente for notário ou oficial de registro, que será remunerado exclusivamente pelos emolumentos integrais pagos diretamente pelas partes em razão de cada ato praticado, fixados e a ele destinados pela respectiva lei da unidade da Federação, pelo que ser-lhe-á garantido a aplicação das disposições dos art. 21 e 28 desta Lei, enquanto durar a designação. (NR)”
No que tange a tentativa de inserção do §3º no Projeto de Lei nº 4.188/2021, importante ressaltar o disposto na Lei 8.935/94, em seu parágrafo 2º, do art. 39, que estabelece que no momento da vacância, a autoridade competente designará o substituto mais antigo para responder pelo expediente, lembrando ainda que o Provimento nº 77/2018, em seu art. 2º, parágrafo 2º, afirma que a designação do substituto mais antigo não pode recair sobre cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade até o terceiro grau ou de Magistrados do Tribunal local, o que reforça a Resolução nº 80/2009, do CNJ, quando em seu art. 3º, parágrafo 2º, diz: não se deferirá a interinidade a quem não seja preposto do Serviço Notarial ou Registro na data da vacância, preferindo-se os prepostos da mesma unidade ao de outra.
Assim, tendo em vista o já estabelecido na Constituição Federal, no Provimento nº 77/2018, e, ainda, na Resolução nº 80/2009 do CNJ, a respeito da Interinidade dos Cartórios, tal só pode recair sobre o Substituto mais antigo da Serventia no momento da vacância e sem que haja vínculo de parentesco até o terceiro grau, seja por consanguinidade, seja por afinidade.
Já no que tange a tentativa de inserção do §4º, os serviços pertinentes às Serventias vagas não poderão ser exercidos em caráter privado, pois como entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal – STF, no momento da vacância, a serventia extrajudicial volta ao poder público, não havendo que se falar em notário ou oficial de registro aprovado em concurso público, pois tais titulares não foram aprovados para àquelas serventias vagas, e, exatamente pelas serventias vagas terem voltado para o poder público, que, por unanimidade, o plenário do STF decidiu que o teto constitucional dos servidores públicos é aplicável à remuneração dos substitutos, interventores, notários ou oficiais, que estejam respondendo interinamente por essas serventias vagas. Decisão esta, que se deu na sessão virtual encerrada no dia 21 de agosto de 2020, no julgamento do Recurso Extraordinário 808202, com repercussão geral reconhecida (Tema 779), disposto acima.
Portanto, a Emenda Nº 49 (correspondente à Emenda Nº 64 – CAE), do Senado Federal, vai em rota de colisão com a Constituição Federal, e com decisões do próprio Supremo Tribunal Federal.
No que concerne a Emenda Nº 42 (correspondente à Emenda Nº 56 – CAE), também de forma sorrateira, este sugere a alteração da Lei 9.492/97, para inserir em seu art. 37, vários parágrafos, dentre os quais o parágrafo 7º, que chama bastante atenção.
Dispõe esse novo parágrafo 7º do art. 37, da Lei 9.492/97:
“Art. 37...
“§7º Os Estados e o Distrito Federal deverão estabelecer, no âmbito de suas competências, a acumulação de tabelionato de protesto que esteja vago no mesmo município ou região administrativa a tabelionato de protesto que esteja provido, bem como a acumulação de tabelionato de protesto que esteja vago em município próximo àquele que esteja provido noutro município ou região administrativa, mesmo que a serventia vaga já esteja oferecida em concurso público de provimento inicial ou remoção, visando o aumento do volume de títulos apresentados a protesto do serviço provido e como compensação, sem ônus para o Poder Público, que preserve o equilíbrio econômico-financeiro dos tabelionatos de protesto, anterior ao deferimento do benefício da postergação da cobrança dos emolumentos conferido aos credores ou apresentantes de títulos e outros documentos de dívida destinadas a protesto.” (NR)
Ou seja, com a inclusão do §7º, do art. 37, da Lei nº 9.492/97, que pode ser considerado uma aberração legislativa, haja vista, que a Constituição Federal deter-mina que os cartórios extrajudiciais só podem ser providos através de concurso de provi¬mento ou remoção, e jamais por redistribuição, o que se pretende é beneficiar os Titulares de Cartórios Extrajudiciais para que estes possam receber de forma integral sobre a arrecadação da serventia, em detrimento dos Substitutos Interinos, dos Fundos Especiais dos Tribunais de Justiça, dos Municípios e da população em geral, já que tal disparate irá trazer perda de arrecadação (ISSQN), caso uma determinada atribuição seja transferida para outro Município, haja vista que a arrecadação do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, será recolhido na sede do cartório que tenha incorporado a atribuição de um outro município, bem como a população terá que se deslocar de um município para outro, já que não existe a possibilidade de se instalar uma sucursal do cartório naquele município, conforme art. 43, da Lei 8935/94.
E por qual motivo este Projeto de Lei visa beneficiar os já então Titulares de Cartórios Extrajudiciais, em detrimento dos Substitutos Interinos, do Tribunal de Justiça, dos Municípios e da população em geral?!?
No estado do Rio de Janeiro, algumas associações de classe, que defendem os Titulares dos Cartórios Extrajudiciais, desejam que um grupo de Titulares incorporem os cartórios vagos antes do término do LIX Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga das Delegações das Atividades Notariais e/ou Registrais, e isto, por certo, porque não obtiveram êxito junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através dos processos administrativos nº 2021-0689907 e 2022-06139319, os quais beneficiariam os presidentes de duas instituições representativas, quais sejam, o presidente do Instituto de Protesto de Títulos do Brasil, que também é titular do 5º Ofício de São João de Meriti, e ainda responde interinamente pelo 2º Ofício de Registro de Protesto de Títulos da Comarca de Duque de Caxias – RJ, e ainda, o presidente do Instituto de Protesto de Títulos do Brasil – Seccional RJ, que também é titular do 5º Ofício de São Gonçalo, entre outros.
Conforme sítio eletrônico da Câmara dos Deputados, este Projeto de Lei visa instituir um marco legal para o uso de garantias destinadas à obtenção de crédito no País. E aqui fica o questionamento: O Marco Legal seria para o uso de garantias destinadas a obtenção de crédito de quem? Ou para quem?
Impõe-se assim, em caráter de urgência, e no interesse maior do respeito à Carta Magna, que o Congresso Nacional, por ambas e/ou qualquer de suas casas, imbuídas do verdadeiro espírito republicano e constitucional, se debrucem tecnicamente sobre tais aspectos, impedindo assim a criação de um monstro legal, e o questionamento da constitucionalidade do Projeto de Lei.
Por todo o exposto, ante a evidente inconstitucionalidade de toda a Emenda nº 49 (correspondente à Emenda nº 64 – CAE), bem como da Emenda nº 42 (correspondente à Emenda nº 56 – CAE), em seu art. 37, parágrafo 7º, do Projeto de Lei nº 4.188/2021, é que elas devem ser retiradas do texto do Projeto de Lei em análise.
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